Sejam todos bem-vindos! Este é um blog criado para divulgar meus contos e trabalhos artísticos. Espero que gostem!

domingo, 28 de outubro de 2012

A luta mais difícil de Sansão

         Wanderson “Sansão” Pereira era um promissor lutador de MMA. Ganhou fama no Pará, sua terra natal, vencendo muitos campeonatos e se estabelecendo como o melhor da região.
        O garoto pobre que começou a vida como balconista de açougue descobriu nas artes marciais mais que uma paixão, descobriu seu verdadeiro eu, o lugar onde ele não era mais um zé-ninguém.
         Gustavo Santos sempre lembrava do combate que assistiu em Belém, numa ocasião em que viajou até lá para visitar seus avós. Ficara impressionado com a agilidade e a força de Sansão. A plateia o ovacionava, mulheres gritavam seu nome, todos queriam uma foto com ele, mas um simples aceno, como o que Gustavo recebeu, já era suficiente. Os patrocinadores apostavam em Sansão e espalhavam cartazes com seu rosto por toda a cidade. Era um ícone.
         Aos 25 anos, como não havia mais ninguém à sua altura no Norte e no Nordeste, Sansão veio treinar no Rio de Janeiro. Começou bem, trazendo muito nome para uma academia da Zona Oeste, depois trocou de empresário e passou a treinar na Zona Sul.
         Sua força era tão grande que o povo costumava dizer que Sansão não batia, distribuía coices.
       Aos 27 anos, já se destacava como o novo nome do vale-tudo brasileiro e abria alguns torneios de UFC. Passara a ser patrocinado por grandes empresas, até mesmo multinacionais, mas o que parecia ser o começo da glória na verdade foi o início de sua tragédia.
        Sansão se tornou autoconfiante demais. E junto com a autoconfiança vieram as mulheres e os amigos que lhe apresentaram uma “coisa maravilhosa” chamada cocaína. Depois veio uma namorada interesseira que torrou seu dinheiro e o fez trocar de empresário novamente, passando a ser agenciado por um sujeito inescrupuloso que, sem que ninguém soubesse, tinha um contrato com um lutador rival que precisava tirar Sansão do caminho. Constantemente passou a ser visto bêbado e drogado, além de faltar a muitos treinos. Afinal, ele era o tal. Treino e disciplina era para iniciantes, não para as estrelas. Virou um trem descontrolado e chegou a parar na delegacia algumas vezes, sempre por fazer arruaça em boates.
      O fundo do poço veio rápido. Ninguém mais apostava nada nele. Os patrocinadores sumiram, os amigos o abandonaram, as piriguetes trocaram de amor e Sansão caiu no ostracismo. Foi varrido pelo vento.
        Fazia quase três anos que não se falava mais no Sansão do Pará, quando Gustavo e o pessoal da ONG financiada por sua igreja começaram um trabalho de recuperação dos viciados em crack que fugiram das favelas de Manguinhos e do Jacarezinho após a ocupação policial.
        E numa noite de outubro, numa pequena crackolândia na entrada da Ilha do Governador, Gustavo reconheceu um dos rostos que tentavam se esconder. Era o lutador que lhe acenara e impressionara tempos atrás.
      Depois de muita insistência do rapaz, o lutador aceitou ser levado para a casa de recuperação administrada pela ONG. Na segunda noite tentou fugir, mas foi encontrado pelos monitores a poucos metros do sítio. Acabou sendo convencido que era melhor voltar.
        Gustavo ia visitá-lo constantemente e mandou instalar no seu quarto um surrado saco para treino que fora substituído por um novo na academia que frequentava. Comprou um par de luvas e imprimiu da internet uma foto de Sansão ainda no auge, para colar no quarto do lutador, ao lado do seu beliche.
       Mas como na maioria dos casos, mesmo com todo incentivo deixar o vício não era fácil. Era o desafiante mais forte que ele já enfrentara.
      Mesmo assim, Sansão se esforçava. Abraçou a fé de Gustavo, fazia tudo que os orientadores mandavam, aprendeu alguns trabalhos manuais e treinava todo o tempo livre. Mas o crack havia acabado com sua agilidade. Sentia-se lento, pesado. A droga comera a parte do seu cérebro que lhe dava agilidade.
         Quis desistir.
         Entretanto, num dia em que pensava em abandonar o sítio de vez, um programa de televisão resolveu ir até lá fazer uma matéria sobre a recuperação de viciados. Os jornalistas se surpreenderam ao descobrir um interno que poderia se chamar de celebridade e a história de Sansão foi contada em rede nacional.
       De repente, uma enxurrada de cartas começou a chegar ao sítio onde ele se tratava. Sua família e muitos fãs estavam felizes em tê-lo reencontrado. A maioria das cartas dizia “não desista!”, “lute, Sansão!” e “esperamos o seu retorno!”.
        Então o lutador se deu conta que não poderia jogar a toalha. Se desistisse, decepcionaria muita gente outra vez.
        As cartas lhe deram mais força e, quando Sansão enfim se viu livre do vício, voltou com Gustavo para sua terra natal, onde foi recebido como um campeão olímpico. Tornou-se um símbolo da luta contra as drogas e passou a ensinar artes marciais para jovens carentes. Não tinha mais condições de disputar torneios oficiais, porém de vez em quando organizava lutas beneficentes. E mesmo que para isso tivesse que enfrentar oponentes que anos atrás cairiam nocauteados com apenas um dos seus socos, isso não importava.
        Sansão era um vencedor no ringue mais difícil de todos: o octógono dentro dele.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

MEMÓRIAS DE UM ESTAGIÁRIO DE DIREITO 4

   Inimigos Públicos de um Estudante de Direito
 
   Engana-se quem pensa que os maiores inimigos de um estudante de Direito são os livros de 600 páginas ou os professores que são mais encontrados nos escritórios que na faculdade. Não, eles atendem pelo nome de Caio, Tício e Mévio (se você leu isso foi graças à digitação, porque até hoje minhas mãos tremem só de lembrar deles), os personagens que aparecem em todos os casos de todos os testes de todos os períodos da faculdade.
    Esses três sujeitos já cometeram mais crimes que Fernandinho Beira-Mar, Al Capone e os Irmãos Metralha juntos, são mestres em negócios jurídicos simulados e se envolvem em acidentes tão complexos que se torna quase impossível descobrir quem teve a culpa antes que você fique vesgo de tanto ler a questão.
    Naquele dia eu estava tenso por dois motivos: tinha prova de Direito Internacional Privado e ficara sabendo que o videogame dos meus sonhos estava sendo vendido por uma bagatela no Mercado Livre, mas com estoque limitado.
    Como o escritório não me dispensou (“Washington, se fosse prova de Processo Civil tudo bem, mas Internacional é mamão com açúcar”, explicação do chefe) resolvi tentar estudar enquanto esperava um processo na fila do Fórum, mas logo descobri que essa foi uma péssima idéia.
    Lia uma tipicamente enrolada questão envolvendo Caio, Tício e Mévio (mãos, por favor, parem de tremer!) quando inexplicavelmente comecei a ouvir os nomes dos infames nas conversas dos advogados que passavam por mim no corredor.
   A partir daí, toda vez que tentava me concentrar na questão escutava alguém falar “encontrei Tício hoje”, ou “vou preparar o Habeas Corpus do Mévio agora”, ou “a apelação do Caio não foi admitida”.
   Fechei a apostila e, ao contrário do que eu esperava, a coisa piorou. Passei a ter a sensação de estar sendo seguido dentro do Fórum e a ouvir sussurros que diziam: “lá está ele, Mévio, vamos pegar aquele estagiário!”
   Corri tão desesperadamente que acabei me chocando com um juiz e derrubando seus papéis, mas antes que ganhasse uma voz de prisão me desculpei o suficiente e, assim que os seguranças me soltaram, catei tudo do chão. Dias depois soube que aquele juiz interditou um homem numa ação de paternidade e reconheceu que um idoso de 85 anos era pai de uma menina de 8 meses, mas acho que eu não tive nada a ver com isso...
   Agora imaginem meu desespero quando, naquela noite, durante a prova, os três apareceram na minha frente e começaram a querer debater as perguntas comigo!
   Pedi ao professor para ir ao banheiro. Lavei o rosto, molhei meus pulsos com água gelada... Aquela alucinação tinha que acabar antes que minha nota se tornasse um zero alucinante!
   Quando voltei à sala, quase dei um pulo ao ver Mévio sentado na minha carteira, rabiscando a prova com minha lapiseira.
   - Sai daí! Esse lugar é meu!
   Todos me olharam com um misto de espanto e desaprovação. Não posso culpá-los, também faria isso se visse alguém discutindo com a carteira.
   Mévio saiu, mas não foi embora. Com aquele falatório incessante dos três, acabei entrando na discussão e o professor quase tirou minha prova, achando que estava colando de algum colega. O que eu poderia dizer em minha defesa? Que estava debatendo o caso com os personagens? Concedendo a eles o direito ao contraditório e à ampla defesa? O pior de tudo é que eles tinham bons argumentos...  Também, depois de tantos problemas legais, não era de se admirar que tivessem um vasto conhecimento do Direito.
   Por fim, decidi que se não conseguiria calá-los, o jeito seria ouvi-los. Quando o professor virou de costas para dar uma rápida espiada pela janela, chamei os três para perto de mim e sussurrei:
   - Tudo bem, vou ouvir seus depoimentos. Mas um de cada vez e somente uma vez por questão, durante 1 minuto. Depois vou decidir e será irrecorrível, entenderam?
   Mévio a princípio não sabia se aceitava, todavia foi forçado pelos outros. Acho que ele sofria bullying...
   E aquele teste se tornou uma audiência quase interminável. Tício chegou até a chorar para me comover na questão nº 3, só que eu sabia que ele não tinha direito à nacionalidade surinamesa.
   O professor já estava deixando a sala quando entreguei a prova, mas enfim conseguira responder tudo. Respirei aliviado. E depois de me virar respirei aliviado pela segunda vez: Caio, Tício e Mévio haviam desaparecido num piscar de olhos, como canetas Bic em cima do balcão.
   Em casa, mais tarde, liguei meu computador e abri a oferta do Mercado Livre. Era uma bagatela, realmente. Tão barato que tive dúvidas sobre a credibilidade daquele anúncio e resolvi checar o vendedor.
   Quase caí da cadeira! O nome do anunciante era Mévio Antunes, o único comprador que deixou um comentário na página se chamava Caio Silva e – aí sim, caí da cadeira – a empresa que faria a venda era a Thi Ci Oh Importações. Desliguei o computador na mesma hora e desisti do negócio. Boa coisa não poderia ser.
   Ah, e quanto ao teste... Só acertei a 3ª questão e fiquei em prova final. Pelo menos o professor aceitou meu pedido de trocar o nome dos personagens por nomes de mulheres. Se eu teria companhia no próximo teste, então que fosse feminina.    

terça-feira, 10 de abril de 2012

QUINCAS MADUREIRA - ADVOCACIA INSÓLITA

O ADVOGADO DE FRANKENSTEIN

            Meu nome é Quincas Madureira (sim, eu sofria bullying dos meus pais) e sou um advogado especializado em casos insólitos. Meu lema é: quanto mais bizarro, melhor. Alguns dos meus casos são tão surreais que, se não fossem os registros do Tribunal de Justiça, ninguém acreditaria.
            Essa é a história do meu primeiro cliente.
Victor, um cientista mais ousado que nudista no Polo Norte, decidiu arriscar-se na tentativa mórbida de criar seu próprio Frankenstein a partir dos restos mortais de alguns indigentes, um tocador de acordeom e do cérebro de um político. A tentativa deu certo e a criatura ganhou vida. Mas quando começou a dizer suas primeiras palavras, um detalhe inesperado levou o cientista a uma profunda decepção: seu Frankenstein era vascaíno.
Após várias tentativas de convencê-lo a mudar de time, Victor, que era rubro-negro de coração, não conseguiu suportar a repulsa e abandonou o monstro à própria sorte em São Januário.
Porém um dia, convidados para participar de mais um desses talk shows apelativos da TV, cujo tema era “Meu filho é um monstro e vice-versa”, os dois estiveram face a face novamente. Vendo que Victor não o aceitaria de volta a não ser que cantasse o hino do flamengo ao vivo, Frankenstein, aturdido pelo vozerio do público que não parava de gritar “Mengooooo, Mengoooo!”, atirou o obeso cientista em cima da apresentadora.
Para sua sorte, o cientista escapou ileso, salvo pela vastidão de suas banhas. Pena que da apresentadora não se pôde dizer o mesmo. A coitada quebrou uma perna, duas costelas e seu silicone vazou para as costas, transformando-a de musa da emissora a Corcunda de  Notre Dame em um só dia.
            Como já era de se esperar, a apresentadora ajuizou uma ação contra o monstro pedindo 1 milhão de danos morais, além de exigir que ele pagasse um tratamento psiquiátrico para seu filho, que não se adaptou à nova forma de mamar.
            Contratado por Frankenstein para defendê-lo, consegui convencer o juiz que meu cliente não era uma pessoa (juridicamente, a personalidade se extingue com a morte e além disso ele era uma colcha de retalhos de um monte de gente). Frankenstein era uma coisa, um simples bem, e coisas não podem ser responsabilizadas!! Se você é mordido por um cachorro, processa quem? O cachorro ou o dono? Se alguém tinha o dever de indenizar a apresentadora, era o próprio cientista.
            E assim ganhei minha primeira causa.
           Entretanto, quando procurei meu cliente para cobrar meus honorários, fui surpreendido pela sua astúcia:
            - Você não falou que eu sou uma coisa? Um contrato feito entre uma pessoa e uma coisa não tem validade, tem? – e com a maior cara-de-pau, Frankenstein pegou seu acordeom para ensaiar o hino do Vasco.
            Não estava preparado para tamanha ardilosidade. Bem que me avisaram que o cérebro dele era de um político... Deveria saber que não era confiável!
            Aceitei ficar no prejuízo, afinal. Ninguém quer um monstro enfurecido na sua cola...
            E no mesmo dia, por uma ironia do destino, outro cliente abominável bateu à porta do meu escritório. Era o Monstro do Pântano querendo uma consultoria ambiental.
            - Só trabalho com dinheiro vivo... e adiantado! – avisei enquanto abria um novo pacote de biscoitos.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

MEMÓRIAS DE UM ESTAGIÁRIO DE DIREITO 3


O Expediente Mortal

Rosa era a serventuária mais odiosa do cartório da 8ª Vara de Fazenda Pública do Rio de Janeiro. Eu mesmo havia sido destratado por ela inúmeras vezes quando tentava fazer carga ou tirar cópia de algum processo. Como se as Varas de Fazenda Pública já não fossem dantescas o suficiente!
Que todos os advogados e estagiários tinham vontade de matá-la, eu já sabia. Mas quando alguém tomou essa iniciativa, confesso que fiquei chocado.
A velha técnica-judiciária morreu às 17h e 45min, pouco antes do horário de atendimento do Fórum encerrar. Caiu de cara em cima de um precatório. Seus colegas de cartório tentaram socorrê-la na mesma hora, porém era tarde demais, a baixa fora definitiva.
A investigação apontou como causa mortis envenenamento com cianureto, o que deixou todos ainda mais surpresos. Lembro que o boato de suicídio circulou um pouco nos corredores do Tribunal, mas logo foi abafado devido a uma premissa simples: Rosa era tão odiosa que jamais pararia de infernizar a vida dos advogados por livre e espontânea vontade. Aliás, não era só o público que ela atormentava. Os outros serventuários da 8ª Vara a detestavam também. A lista de suspeitos da polícia era mais longa que discurso de deputado baiano.
Nós, no escritório, falávamos sobre o caso o tempo todo e foi justamente durante uma conversa banal entre Nelson e eu que Clarice teve um rompante elucidativo à lá Sherlock Holmes e resolveu o mistério.
- Aquela mulher era a maldade em forma de servidora pública – disse Nelson.
- É verdade... A bruxa me fazia esperar enquanto ela conferia folha por folha dos autos sempre que devolvia um processo – reclamei.
- Mas fique tranquilo, Washington, ela não estava apaixonada por você – Nelson poderia perder até o aniversário da mãe dele (o que de fato costumava acontecer), mas nunca, nunca perdia a oportunidade de fazer uma piada –, ela agia assim com todo mundo.
Jamais vou esquecer quando, naquele momento aparentemente inofensivo, Clarice fez uma cara de espanto como se estivesse vendo um fantasma (achei que fosse o da própria Rosa) e em seguida correu desembestada até o telefone para falar com o delegado encarregado do caso, derrubando café no colo de Nelson.
- Aaaaaau! Clarice, assim você vai aposentar o Nelsinho antes do tempo! – saiu gritando em direção ao banheiro. 
No dia seguinte, com um mandado de prisão na mão, a polícia invadiu o escritório da ex-mulher do Dr. Rubens Andrade e levou a advogada Vera Barbosa até a delegacia.
Enquanto observávamos do outro lado da rua junto com um monte de curiosos a advogada sendo colocada na viatura, Vivian, a gatíssima e explosiva ex-mulher do Dr. Rubens, veio furiosa falar conosco.
- Você me paga, Rubens! Isso é denunciação caluniosa! Ela é minha melhor advogada!
- E também uma criminosa – revidou o chefe, sem perder a pose.
- Vou até o Supremo se for preciso!
- Acho melhor gastar suas energias em outro processo – disse ele, abrindo um sorriso no canto da boca –, o processo seletivo para a vaga de advogada...
Vivian saiu cuspindo marimbondos e acompanhou Vera até a delegacia, onde teve o desprazer de ver a advogada confessar o crime.
Ainda na rua, enquanto nos afastávamos da multidão, perguntei à Clarice como ela descobrira tudo, já que até aquele momento ela se recusava a explicar.
- Não fui eu, foi você... e o nome dela! – respondeu a advogada-detetive, sustentando o mistério.
- Não entendi nada. Nome de quem?
- Da Rosa! Quando conversava com Nelson ontem de tarde você comentou que a defunta sempre conferia cada folha dos processos que eram devolvidos no cartório. Lembra como ela fazia?
- Molhava o dedo na língua enquanto passava as páginas... – de repente, as peças se juntaram na minha cabeça. – O veneno estava no precatório!
- Elementar, meu caro Washington. Mas não era o precatório que estava envenenado e sim o processo que a Rosa conferiu antes de pegá-lo. A perícia comprovou que havia cianureto nas pontas das páginas desse processo que, por uma ironia maquiavélica, versava sobre revisão de pensão post mortem, um benefício que o viúvo dela agora receberá.
- Agora eu vou vomitar – Nelson a interrompeu. – Alguém foi capaz de casar com aquele maracujá-de-gaveta?
Como ninguém riu da piada sem graça, Clarice continuou:
- Vi pela internet que Vera foi a última advogada a fazer carga desse processo e lembrei que antes do divórcio do Dr. Rubens, quando Vivian e a equipe dela dividiam o escritório com a gente, Vera me disse que seu marido era químico (logo, foi através dele que ela conseguiu o veneno) e que o livro preferido dela era O Nome da Rosa, que traz um livro envenenado como arma do crime.
- Clarice, você já quis ser detetive? – perguntou Nelson.
- Não... Já quis ser assassina – Clarice respondeu sem pestanejar.
Aquela resposta tinha tudo para ser uma boa tirada de humor, mas o olhar vago de psicopata que ela fez em seguida gelou minha espinha até o cofrinho. 
- Bom, – disse Rubens, meio desconfiado – nesse caso, ainda bem que você mudou de idéia...
- Quem te garante isso? – Clarice deu o sorriso mais enigmático que já vi e saiu andando na frente, sob o pretexto de que precisava “se livrar de um cliente chato”.
Ficamos parados alguns instantes vendo-a se afastar, petrificados.
- Você checou os antecedentes dela, Rubens?
- Não, Nelson... Mas é a primeira coisa que vou fazer quando voltar ao escritório...

FIM

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

CAPITÃO ABRANTES


           

            João saiu apressado em direção ao trabalho, mas o diálogo que tivera com sua esposa ainda na porta de casa ecoava repetidamente na sua cabeça:
            - Você tem certeza que quer fazer isso? – ela perguntou.
            - Essa situação acabou se tornando um estorvo para todos nós – ele abriu a porta. – Não tem jeito.
            - Não quer pensar mais um pouco?
            - Já tomei minha decisão. Não estou feliz, mas acho que estou fazendo a coisa certa. Ligue para aquele número que deixei em cima da mesa e acerte tudo, ok?
            - Tudo bem...
            Uma hora depois, dentro de uma sala altamente protegida na Fundação Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, ele se sentou e abriu uma das várias caixas que lotavam o ambiente. João era advogado e fazia parte da Comissão da Verdade, designada para analisar os arquivos secretos da ditadura militar. Sabia que precisava se concentrar em sua importante tarefa e deixar os problemas de casa em casa, por isso fez um esforço mental para esquecê-los e pegou uma volumosa pasta dentre as enfiadas na caixa.
            A etiqueta dizia “Capitão Abrantes - Confidencial”. Recostou-se na cadeira, afrouxou a gravata e abriu a pasta, sem fazer ideia do peso da história que encontraria nas linhas datilografas daquelas cento e poucas páginas que o tempo fez amarelar.
            “Incidente ocorrido em junho de 1970” – dizia a primeira linha.
            - Nem durante a Copa do Mundo as coisas paravam aqui... – o pensamento foi inevitável para João, que por alguns segundos se lembrou da própria infância naquela época.
            Voltou a ler o documento.
            Carlos Abrantes era um viúvo de meia idade, Capitão do Exército, e trabalhava em um setor burocrático dentro do Palácio Duque de Caxias. Sua esposa morrera de câncer em 1959. Tinha um filho único chamado Sérgio, universitário, calouro da Faculdade Nacional de Direito. Os dois moravam em uma casa de vila no bairro do Catete.
            O relatório não fazia menção a qualquer atitude suspeita ou desonrosa do Capitão Abrantes até ali. Pelo contrário, informava muitas condecorações.
            Tudo mudou em 1º de junho de 1970, quando Sérgio saiu para encontrar uns amigos de faculdade e não voltou mais.
Ninguém do caderno de telefones do Capitão Abrantes sabia onde seu filho estava. Mesmo após uma angustiada peregrinação entrando e saindo de delegacias, hospitais, bares e, por fim, do necrotério, nada de Sérgio.
- Bom dia, bom dia... – aos poucos os outros colegas da Comissão começavam a chegar. João respondeu brevemente, mal levantando os olhos.
Após virar o quarto do filho de ponta-cabeça, a foto de uma moça morena, bem bonita, dentro de um dos livros de Filosofia do Direito parecia ser a primeira pista.
O Capitão, vestido como civil, encontrou-a na porta da faculdade, conversando com outros colegas, mas a moça, entrando rapidamente para a aula, disse-lhe não saber de nada.
À noite, porém, um envelope vermelho atravessou por debaixo da porta de sua casa. Da janela pôde ver a moça da foto correndo para longe.
A carta não poderia ser mais aterradora: Sérgio havia sido preso por homens do Serviço Nacional de Informações, confundido com militantes do MR-8 durante uma reunião clandestina. A culpada era ela. Sérgio estava apaixonado e queria se aproximar dela a todo custo. Chegou a fingir ser militante e pediu para acompanhá-la àquela reunião. Era a primeira da qual participara e, no caso, corria o risco de ser a última também. A morena escapou, mas sentia muito, dizia a carta, assinada por “Ingrid”. O paradeiro de Sérgio, no entanto, era desconhecido.
Quando todos os amigos do Exército lhe negaram ajuda e viraram as costas, Capitão Abrantes mergulhou de cabeça no maior pesadelo de sua vida, sem pensar nas conseqüências. A arrepiante imagem do jovem e franzino Sérgio sendo torturado pelo SNI em sua mente não lhe deixava descansar. Jurou a si mesmo que salvaria seu filho mesmo que para isso tivesse que se tornar o inimigo número um da pátria. Coagiu praças e subornou oficiais até descobrir em que porão seu filho estava preso. Buscou informações de todos os tipos que lhe ajudassem a bolar um plano. Vendeu seu Opala para fazer mais subornos. Falsificou documentos, ordens, roubou materiais, armas e por fim voltou a procurar a moça do MR-8. Precisava falar com os líderes de sua célula.
João já estava ficando sem fôlego quando seus colegas o chamaram para o almoço, que ele praticamente devorou para voltar logo ao relatório.
Quando os revolucionários descobriram que ele era um militar, o Capitão foi duramente torturado até conseguir convencê-los de que estava falando a verdade. Por pouco não morreu. Uma vez conquistada a confiança do MR-8, apresentou seu ousado plano.
No dia 21 de junho de 1970, enquanto o Brasil inteiro parava para assistir à final da Copa do Mundo na Cidade do México, a seleção do Capitão Abrantes entrou em campo. Um sabotador provocou um enorme curto na rede elétrica da casa na Lapa em que o SNI mantinha Sérgio e outros estudantes em cativeiro. O incêndio se espalhou rápido e os fez telefonarem para o Quartel-General do Corpo de Bombeiros no primeiro minuto do jogo. Como a bola já rolava, o bombeiro que atendeu a ligação sem desgrudar os olhos da TV não deu muita atenção à patente de quem ligava e mandou os poucos brigadistas dispostos atenderem ao chamado.
Aos 15 minutos de jogo, o caminhão vermelho foi interceptado por Capitão Abrantes e os revolucionários em uma esquina deserta do centro da cidade e os bombeiros rendidos. Rapidamente os uniformes trocaram de corpos e os brigadistas de cuecas foram jogados em uma Kombi que desapareceu em seguida. Três minutos depois, quando Pelé fez o primeiro gol e os cariocas apareceram em peso nas janelas para gritar, ninguém viu nada de errado, só um caminhão do Corpo de Bombeiros indo inocentemente apagar um incêndio.
A ação foi rápida. Enquanto os homens do SNI esperavam mangueiras, foram recebidos com metralhadoras. O efeito surpresa foi tão grande que ninguém tentou reagir.
Sérgio e os outros estudantes foram substituídos pelos agentes do SNI nas celas e levados em meio às chamas até uma ambulância roubada que acabara de chegar ao local – a sincronia era imprescindível.
Com os inimigos amordaçados, amarrados e trancafiados, os revolucionários apagaram o incêndio antes que pudessem chamar mais atenção e foram embora aos 37 minutos do primeiro tempo, enquanto o Brasil inteiro reclamava do gol da Itália.
O advogado imaginou o abraço apertado no reencontro do Capitão Abrantes com seu filho.
Longe dali, no momento em que Gérson fazia o segundo gol do Brasil aos 21 minutos do segundo tempo, o caminhão do Corpo de Bombeiros e a ambulância foram escondidos na garagem de uma fábrica abandonada no subúrbio, junto com os reféns brigadistas. A fábrica no passado pertencera à família do Capitão Abrantes, mas em 1970 não passava de ruínas.
Os estudantes e os revolucionários trocaram de roupa ainda na fábrica, disfarçando-se de torcedores, e se prepararam para realizar a parte final do plano, seguindo em outras duas Kombis – uma delas em direção a um ponto de encontro definido pelos militantes e a outra ao cais do porto, onde um navio de carga holandês esperava para levar o mais novo traidor da pátria, Capitão Abrantes, junto com seu filho, clandestinamente para fora do país.
O que eles não contavam é que Ingrid, na verdade, era uma espiã do SNI e havia transmitido algumas informações sobre o plano, o que permitiu aos agentes da ditadura segui-los até a fábrica, onde os encurralaram enquanto o país comemorava o terceiro gol do Brasil, aos 26 minutos.
João quase não conseguia respirar.
Mesmo com vários policiais e militares armados até os dentes invadindo o esconderijo, Capitão Abrantes não se rendeu. Deixou o MR-8 trocando tiros com eles, pegou seu filho e fugiu pelo mesmo alçapão que seu avô utilizava para fugir dos cobradores. Sua luta não era contra o regime, era a favor do seu filho. Se isso fazia dele um desertor duas vezes, não importava. Só o seu filho importava.
Do lado de fora, roubou o carro de um morador da região que passava desavisado e rumou ao porto quase sem tirar o pé do acelerador. Pelo retrovisor, aparentemente ninguém os seguia.
Quando chegaram na Praça Mauá ouviram novos gritos enlouquecidos. Era o quarto gol do Brasil, aos 41 minutos do segundo tempo. A partida estava quase terminando e, com sorte, a fuga deles também. Largaram o carro em qualquer canto e correram para o cais.
De repente, uma voz conhecida bradou: - Vocês não vão a lugar algum!
Ao virar-se instintivamente, o pai recebeu dois tiros no peito, bem perto do escudo da Seleção. Era Ingrid, acompanhada de agentes do SNI. O grupo antecipadamente os esperava no porto, de arma em punho.
João pôde ver a cena inteira como se estivesse se desenrolando diante de seus olhos mareados, embora esta pequena parte omissa no relatório tivesse ficado a cargo apenas da sua imaginação: Capitão Abrantes, caído nos braços de seu filho, que chorava em alta voz, não precisava mais de palavras para dizer o quanto o amava, por isso reuniu suas últimas forças apenas para dizer: “fuja, meu filho, fuja!”.
Voltando ao relatório: de repente, uma multidão vestida de verde e amarelo saiu como que do nada e envolveu a todos em meio a berros de “Tricampeão! Tricampeão!”, ignorando por completo o que estava acontecendo. O jogo havia terminado.
Não se pode afirmar que a sincronia dos fatos foi um milagre, mas o fato é que, ocultado pela multidão, Sérgio desapareceu diante dos olhos de Ingrid e só restou ao SNI recolher o corpo de seu pai ao som de “Brasil! Brasil!”, porque o navio em que o rapaz embarcaria era um segredo guardado apenas entre pai e filho. O país tinha vencido a Copa do Mundo e Capitão Abrantes vencido a ditadura: seu filho estava a salvo.
O relatório seguia com informações sobre as prisões dos integrantes do MR-8, mas para João já era o bastante por um dia.
Voltou para casa sem conseguir parar de pensar na história.
- Liguei para o número que você pediu – disse a esposa quando ele entrou –, o pessoal do asilo vem pegá-lo amanhã às...
- Esquece – ele a interrompeu –, não vou fazer mais isso.
Enquanto ela permanecia parada na sala, ainda surpresa, João abriu a porta de um quarto e viu novamente a imagem de seu pai deitado na cama, já bem idoso e com o Alzheimer em estágio avançado, que lhe sorriu delicadamente em um dos seus raros momentos de lucidez.
Sentou-se ao seu lado na cama e lhe acariciou os cabelos. João se arrependia por ter esquecido os muitos sacrifícios que o pai fez por ele. Podia não ser o Capitão Abrantes, mas era seu pai, seu herói. E heróis não devem ser abandonados. Devem ser honrados. 

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

MEMÓRIAS DE UM ESTAGIÁRIO DE DIREITO 2


O CASO DO CHARLES BRONSON DE SÃO CRISTÓVÃO – FINAL



            A testemunha morava quase dentro da Favela da Maré, há poucos metros da Passarela nº 8 da Avenida Brasil. Eu estava em frente ao portão da casa e ao lado do chassi incinerado do que um dia foi um fusca, desesperado, ligando para o escritório.
            De repente, um grito abafado de socorro quase parou meu coração. Vinha de dentro da casa e parecia a voz de uma mulher. Quando informei a novidade pelo celular, a resposta de Nelson não pôde ser mais cretina:
            - Dá o teu jeito, Washington! Salve a testemunha!
            Comecei a discar 190, porém antes de completar a ligação imaginei que talvez não houvesse tempo suficiente e depois concluí – olhando para o ex-fusca – que a polícia não deveria ser muito bem recebida ali.
            - Socorro! – ouvi o grito de novo.
            Pensei no Charles Bronson sendo condenado mesmo agindo em legítima defesa. Pensei na possibilidade de perder meu estágio. Mas, sobretudo, pensei no meu PlayStation II.
            Em momentos de grande tensão, pessoas costumam fazer coisas idiotas. Eu não era diferente. Decidi invadir a casa através do muro da vizinha, que era mais baixo, mas como não nasci com vocação para trapezista, assim que consegui pular para o muro que dividia os dois terrenos me desequilibrei e cai em cima do varal da testemunha. Não é difícil suspeitar que aquilo não daria certo. A ponta da corda atrás de mim arrebentou e desci pendurado nela como uma mistura de Indiana Jones e Os Trapalhões. E para completar minha patetice, o alagamento da cisterna transformou o chão em uma verdadeira lâmina d’água, o que fez com que eu deslizasse – ainda sem soltar a corda e com um calçolão na minha cara, tapando minha visão – até chapar por completo em uma lixeira e um monte de quiquilharias encostadas na parede dos fundos.
            Recompus-me rapidamente, mas não sem antes, num lampejo de Direito Civil, lembrar que, caso causasse algum dano ao patrimônio alheio naquele salvamento, a excludente do “estado de necessidade” não me protegeria de ter que indenizá-lo. “Será que vão descontar do meu pagamento? Não, eles não seriam tão muquiranas... Ah, esqueci que estou lidando com advogados. É claro que vão me descontar.”
            - Socooooorro! – o grito abafado me despertou do meu devaneio jurídico.
            Entrei pela porta dos fundos (a única destravada) e vasculhei pela casa até encontrar a testemunha de um jeito que eu jamais imaginaria: amordaçada e amarrada pelos pulsos à cabeceira da cama do quarto.
            - Ele é maluco! – disse ela assim que tirei a mordaça. – Me tira daqui, moço!
            - Quem fez isso com você?
            - Tonhão, o meu namorado! – realmente ela tinha um dedo podre para a coisa. – Ele tá achando que eu to traindo ele! Me amarrou aqui pra “mim” não “se” encontrar com ninguém enquanto ele trabalha!
            - Ufa! Então ele tá longe daqui...
            - Daqui a pouco ele chega pra almoçar!
            Ela nem havia terminado a frase e eu já estava desamarrando suas mãos que nem um doido. Coloquei-a sentada na cadeira de rodas, apoiando as pernas engessadas com cuidado, e nos mandamos dali mais rápido que um advogado consegue dizer “liminar inaudita autera pars”.
            Quando Tonhão chegou em casa para almoçar, nós já estávamos pegando um táxi na Avenida Brasil.

A Audiência



            A última testemunha a ser ouvida antes da moça do caixa era uma moradora do prédio em frente ao lugar onde aconteceu o fato. A senhora Lourdes Maria, de 75 anos, chamada pela acusação, disse que assistiu tudo de sua janela e jurou que viu Eleutério sacar a arma antes da vítima. Doris Day tinha acabado de inquiri-la e o juiz em seguida passou a palavra para Nelson.
            O júri observava tudo já cansado, com vontade de ir para casa, e quase chiou quando ouviu a inesperada pergunta do advogado:
            - A senhora gostava da novela Selva de Paixões?
            - Excelência! Essa pergunta não tem nada a ver com o caso! – protestou Doris.
            - Meritíssimo – suplicou Nelson quase teatralmente, antes de ter sua pergunta indeferida –, essa pergunta é crucial para a resolução do caso e prometo que não vou me estender! Deixe-me terminar o raciocínio e todos saberão a verdade!
            O juiz consentiu e os jurados baixaram a cabeça.
            - Sim, era minha novela preferida... Quando o Orlando Fagundes aparecia na tela minha pressão até subia!
            - Muito bem. E a senhora se lembra do último capítulo?
            - Claro! Vi duas vezes, até na reprise do sábado!
            - A senhora lembra o dia em que foi ao ar o último capítulo?
            - Protesto! – interrompeu Doris, novamente.
            - Prossiga – disse o juiz.
            - A novela Selva de Paixões acabou no dia do ocorrido e o seu último capítulo foi ao ar no exato momento em que o réu repeliu a agressão da vítima! Pode conferir no site da rede de TV! A senhora estava tão distraída que nem sequer ouviu a discussão no trailer, não é?
            - Excelência! Ele está induzindo a testemunha!
            Nelson, com o rosto vermelho e a veia quase saltando do pescoço, continuou sem esperar a decisão do juiz.
            - A senhora não ouviu a discussão e por isso não pôde ter levantado do sofá, pego seu andador e ido até a janela a tempo suficiente de ver se o réu sacou a arma antes ou depois da vítima! É melhor admitir isso antes de ser acusada de violar seu compromisso!
            - Protesto! Protesto! – a promotora quase pulava de sua bancada.
            O júri agora assistia estarrecido a reviravolta do caso.
           - Esse homem é um assassino! O Pedrinho era um bom menino! – bradou dona Lourdes, quando viu que havia sido desmascarada. – Vocês tem que prendê-lo!
            - Sem mais perguntas, Excelência... – Nelson voltou ao seu lugar com um sorriso no canto da boca. Clarice e eu, que assistíamos a audiência junto com a plateia embasbacada, tivemos vontade de aplaudi-lo.
       O testemunho da Joseane, a moça do caixa, foi apenas a tampa do caixão. A performance surpreendente de Nelson havia pego os jurados de jeito. Por um instante fiquei com aquela sensação ruim de “tanto trabalho pra nada”, no entanto o gosto de ter participado de alguma forma daquela vitória foi tão sensacional que nem tive vontade de reclamar. Além disso os meus hematomas só doeram pra valer no dia seguinte. 
            Doris Day, em suas alegações finais, abandonou a questão de “quem sacou a arma primeiro” e ressuscitou o ponto do “excesso na legítima defesa”. Nelson já havia refutado essa acusação dizendo que, de acordo com o treinamento que Eleutério recebera, caso tivesse intenção de matar, teria acertado em algum ponto do tórax para cima.
            Eleutério Gomes, o Charles Bronson de São Cristóvão, foi absolvido por seis votos contra um e quase pulou de alegria quando ouviu o veredito. Doris Day ficou revoltada e prometeu apelar. 
          Coloquei Joseane num táxi, porque de jeito nenhum arriscaria encontrar o tal do Tonhão me esperando em Bonsucesso. Antes de partir, ela me perguntou se poderia me “considerar seu herói” e me passou um bilhete com um número de telefone – pelo visto as suspeitas dos seus namorados não eram tão infundadas, ela gostava de um litisconsórcio amoroso...
Por fim, voltamos para o escritório sorridentes após aquela vitória, mas a estratégia de Nelson se revelou mais surpreendente do que eu pensava:
- Quando você descobriu que o final da novela tinha passado naquele dia? – perguntei.
- Cara, eu sei lá que dia acabou essa novela! Joguei verde pra colher maduro!
- Peraí? Você blefou?
- A testemunha tem o compromisso de falar a verdade, eu não. E eu suspeitava que ela estava mentindo. Você também vai pegar esse feeling.
- Sensacional! – tive a sensação de que aprenderia muito naquele estágio e já comecei a me imaginar um grande advogado num futuro bem próximo.
- Ah, meus parabéns por ter trazido a testemunha. Ótimo trabalho! - por um instante, achei que ele não lembraria de me agradecer pelo meu "heroico" desempenho.
         Peguei minha mochila enquanto agradecia. Era o fim do meu primeiro dia no escritório e estava cansado de tantas emoções, porém ainda tinha uma aula me esperando.
- Estou dispensado, então?
- Claro, Washington! Quando acabar de arrumar o arquivo, pode ir! 
         É fato: o estagiário sempre se ferra.


segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

MEMÓRIAS DE UM ESTAGIÁRIO DE DIREITO

Atenção, você está intimado a seguir as peripécias de Washington Silva, o zigoto de advogado do Andrade Filho - Advogados Associados, em histórias intrigantes e bem-humoradas sobre os bastidores do Direito! 

Fique à vontade para consignar abaixo seus elogios e seus protestos!

            A série "Memórias de um Estagiário de Direito" entra em vigor na data desta publicação.
          
       

O CASO DO CHARLES BRONSON DE SÃO CRISTÓVÃO - PARTE I

Charles Bronson

            Saí de casa naquela manhã de agosto de 2006 com um ar triunfante, assim que terminei meu café. Na mochila levava os amigos inseparáveis de todo estudante de Direito: um mini vade mecum, o caderno da aula da noite e duas canetas Bic (com as tampas mordidas, é claro!). O terno azul-marinho era novo – presente do meu pai – e a gravata estava no bolso, porque no Rio de Janeiro até no inverno parece que o Senhor às vezes liga o maçarico. Dentro do ônibus lotado que precisava pegar, então, nem se fala.
            Meu nome é Washington Silva e aquele era meu primeiro dia no escritório de advocacia Andrade Filho - Advogados Associados, lugar onde conheci pessoas incríveis e vivi inúmeras aventuras, que agora resolvi relatar.    
            O estágio me fora arranjado pelo meu pai, que era gerente da loja de roupas preferida do Dr. Rubens Andrade Filho, o dono do escritório. É impressionante o network que se forma em uma loja de roupas. Papai sempre conseguia alguma coisa para mim e para meus irmãos através dos seus clientes, como ingressos para shows, descontos em cursos, bicos e, desta vez, um contrato de estágio.
            Cursava o 7º período da faculdade de Direito, tinha acabado de pegar minha carteirinha de estagiário da OAB e não apenas desejava um estágio como precisava de um. Nossa família era humilde e, se eu quisesse regalias, tinha que “suar a camisa”, como dizia meu pai, um homem que veio de Reriutaba, interior do Ceará, ainda adolescente e ralou muito aqui no Rio de Janeiro para conquistar seu lugar ao sol, ainda que fosse um lugar bem apertado.
            O escritório ficava no 4º andar da Rua México nº 22, sala 401. Enquanto subia pelo elevador, coloquei minha gravata e respirei fundo para conter o nervosismo. Estava uma pilha de nervos. Ensaiei alguns cumprimentos ali mesmo, já que estava sozinho.
            - Aperte a mão sempre com firmeza – papai ensinava –, isso mostra que você é um “cabra” decidido.
            Toquei a campainha. Ninguém.
            Toquei de novo. Nada.
            - Estranho...
            Apertei o botão mais uma vez.
            - Será que errei de número? Mas o nome do escritório está na porta...
            Claque, Claque. A porta se abriu e um homem de terno cinza, meio bagunçado, apareceu.
            - Desculpe, é que o filho da secretária pegou uma virose e estamos atolados de trabalho aqui. Você é o estagiário novo?
            - Sim, Washington Silva, muito prazer – apertei a mão dele com firmeza.
            - Nelson Pascarelli. Entre, seja bem-vindo ao nosso time!
            O Andrade Filho era um escritório pequeno e pegava todo tipo de causa. Nele testemunhei os casos mais esdrúxulos e também os mais escabrosos. A sala não era muito grande, mas parecia ainda menor que da primeira vez que estive lá, há uma semana, quando fiz a entrevista com o Dr. Andrade. Acredito que tive essa impressão porque agora estava presente todo o imenso corpo jurídico de três advogados que nele trabalhavam.
            Nelson Pascarelli era um sujeito engraçado, cheio de TOCs e bastante atrapalhado, mas que se mostrou muito competente em muitos casos de que pude participar. Tinha pouco mais de 30 anos e era especializado em Direito Penal, apesar de atuar em causas cíveis com alguma desenvoltura. Um cara apaixonado pela advocacia, que não conseguia se ver fazendo outra coisa na vida. Brilhante, mas completamente desregrado. Não completava uma pós-graduação que se metia a fazer, sua conta bancária era mais vermelha que o uniforme do América F.C. (havia mais de um ano que ele não conseguia sair do cheque especial) e sua vida amorosa parecia um filme do Woody Allen.   
            Clarice Oliveira, a outra advogada, era baixinha, magrinha e poderia facilmente ser confundida com uma estagiária, por aparentar ser bem mais nova do que realmente era. Sua aparência meiga e frágil me fazia lembrar a princesa do Mário Bros. (apesar de ser morena), mas isso era só fachada. Não demorou muito para descobrir seu lado estressado, workaholic e, principalmente, combativo, o que conta muito na nossa profissão. Peitava qualquer juiz, policial, atendente de telemarketing... e quando abria a boca para dar uma “escovada” em alguém, parecia uma Tsunami. Fazia mestrado em Responsabilidade Civil e cuidava, na maior parte do tempo, do que chamamos de “contencioso de massa”, ou seja, as ações repetitivas que lotam qualquer tribunal.
            Por fim, o chefe. Rubens Andrade Filho, um bon vivant de quase cinquenta anos, administrava o escritório e só atuava nas causas muito grandes. Possuía uma ex-mulher e também ex-sócia que levara metade do escritório no processo de divórcio. Desde então passaram a ser rivais nos negócios e não raramente se engalfinhavam no Tribunal de Justiça do Estado. Gostava de mandar e-mails motivacionais para a equipe, em geral PowerPoints do tipo que todo mundo deleta, mas ficava meio arisco quando alguém pedia um aumento. “Não sei, estamos com muitas despesas”, costumava dizer.
            Todos me receberam muito bem, com sorrisos, tapinhas nas costas e a famosa mentira “pode me perguntar qualquer dúvida que eu te ensino”.
            Minha primeira tarefa trouxe um peso imenso para meu currículo e agregou muito valor à minha vida profissional:
            - Washington, pode arrumar as pastas no nosso arquivo? A semana passada foi muito cheia e acabamos fazendo uma bagunça enorme.
            - Claro, Dr. Andrade!
            - Pode me chamar de Rubens – disse sorrindo.
            Enquanto organizava as pastas dos processos pela ordem alfabética no arquivo de metal colado na parede, aproveitei para ouvir a conversa dos advogados e ir me familiarizando com os assuntos do escritório.
            - Clarice, esqueci de te perguntar, como foi a audiência da Vânia na sexta? – perguntou o chefe.
            - Horrível! A safada não me disse que tinha feito exames médicos antes de contratar o plano de saúde e eles descobriram que ela já sabia do problema cardíaco. Doença preexistente... Fui pega com as calças arreadas.
            - Que droga! – disse Nelson.
            - Por falar nisso – continuou o Dr. Andrade, digo, Rubens –, hoje é a continuação da audiência do Eleutério Gomes, não é, Nelson?
            - Aham, o Charles Bronson de São Cristóvão.
            Clarice riu:
            - Só você para dar um nome desses ao caso!
Doris Day
            - Saímos sete horas na noite na sexta e o júri ainda não tinha ouvido todas as testemunhas. O juiz marcou a continuação para hoje à 13h. A Doris Day já deve estar roendo as unhas hahaha!
            Aprendi depois que Doris Day era o apelido que Nelson dera à Solange Olivetti, Promotora de Justiça encarregada do caso, por causa do seu jeito xerife, em homenagem ao filme “Ardida como Pimenta”, estrelada pela primeira.
            Rubens perguntou se estava tudo ok para a audiência e Nelson disse que sim, precisava apenas buscar uma das testemunhas.
            Eu necessitava demais daquele estágio. Queria aprender muito e me tornar um grande advogado, mas, principalmente, pretendia comprar um PlayStation II. Parei de arrumar as pastas e intervi na conversa:           
- Posso buscá-la para vocês! Enquanto isso o Nelson fica se preparando para a audiência! – dá-lhe Washington Silva, que exemplo de proatividade!
            - Ótima idéia – disse Rubens.
            - Esse menino promete, heim? – brincou Clarice.
            Nelson concordou e me chamou para explicar o caso, enquanto tirava uma caixa de balas do bolso do terno.
            - Quer um tic-tac?
            Aceitei e peguei uma bala só, para não parecer muito abusado.
            - Pegue duas – a princípio achei que fosse generosidade, mas descobri depois que Nelson tinha um TOC com números ímpares. Até o volume do rádio ele sempre mudava para um número par, mesmo não sendo o dono do aparelho.
            Eleutério Gomes era um policial militar aposentado metido a justiceiro. Rezava a lenda que ele havia integrado o Esquadrão LeCoq nos anos 70 e que gostava de caçar os pivetes de São Cristóvão, bairro onde morava, ao melhor estilo Charles Bronson em Desejo de Matar.
            Certa noite ele e sua esposa comiam cachorro-quente tranqüilamente em um trailer perto da Quinta da Boa Vista, quando Pedro Lopes, um valentão do bairro apareceu já bêbado e quis conversar com a moça do caixa, sua ex-namorada. Pedro não aceitava o recente fim do namoro, especialmente por haver rumores de que ela já havia feito a fila andar.
            Como ela estava trabalhando, tentou enxotá-lo como se fosse uma mosca impertinente e isso o irritou. Começou uma discussão e Pedro foi ficando cada vez mais agressivo, a ponto de segurá-la pelo braço com força.
           Foi demais para Eleutério. O justiceiro não podia admitir que uma moça tão simpática fosse tratada daquela maneira. Levantou-se de sua mesa e foi até Pedro.
            - Deixe a moça em paz!
            - Vá embora, seu velho!
            - Eu disse para deixar a moça em paz!
            - Vovô, se manda antes que sobre pra você também!
            Quando Pedro virou de costas, Eleutério o puxou pela gola da jaqueta e o jogou no chão (a queda foi facilitada pela embriaguez). Em seguida, o velho sacou seu revolver calibre 38 da cintura e deu quatro tiros no valentão: o primeiro ele errou, o segundo ficou alojado na coxa esquerda de Pedro, o terceiro varou a coxa direita e o quarto acertou o seu abdômen. O homem agonizou e morreu antes de a ambulância chegar.
            - Estamos alegando legítima defesa – afirmou Nelson.
            - Não acha que houve excesso? – perguntei.
            Naquele instante aprendi minha primeira grande lição a respeito da advocacia:
            - Washington, se você não acredita na sua causa, ela já está perdida antes da sentença. Não somos pagos para julgar, somos advogados... Além disso, Pedro também estava armado e há duas testemunhas que disseram que ele tentou sacar seu revólver antes de Eleutério. O problema é que uma delas já faleceu.
            - E a segunda é a que eu tenho que buscar?
            - Isso. O nome dela é Joseane Santos, a moça do caixa. Combinei de buscá-la porque sofreu um acidente de moto-táxi e não está podendo andar temporariamente.
            - Ok, sem problemas.
            - Aqui está – me passou um pedaço de papel com o endereço e uns números de telefone.  – Sabe chegar em Bonsucesso?
            - Sei, claro.
            - Vá de ônibus e volte com ela de táxi – que muquirana. – Pegue dinheiro na saída.
            Aceitei minha primeira missão com muita satisfação e também aliviado por ter largado o trabalho chato com as pastas, mesmo sabendo que teria que terminá-lo depois. Mas eu não sabia onde estava me metendo. Quando cheguei ao endereço que Nelson me passara, não encontrei ninguém. Liguei para os números de telefone e ninguém atendia. Perguntei por ela aos vizinhos e me disseram que não a viam desde o dia anterior.
Fiquei desesperado. Faltavam 2 horas para a audiência e a testemunha havia sumido!

Continua na próxima semana!